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No silêncio, a presença: Diário de Campo

Saímos de Brasília numa noite abafada, carregando malas, EPIs e uma boa dose de expectativa. A rota nos levou até Pernambuco, onde dormimos para retomar a estrada na manhã seguinte. O Rio São Francisco nos recebeu com seu espelho largo e calmo, cenário do almoço antes de cruzarmos a ponte rumo à Bahia. Era só o começo, mas já dava para sentir que não seria uma viagem comum.

Chegamos em comboio: três viaturas do ICMBio e duas da Polícia Federal. Sirenes ligadas, cadeados prestes a ceder – a cena parecia saída de um filme de ação, mas ali era a vida real mesmo, com suas burocracias, tensões e um protagonista inesperado: o bem-estar de uma das espécies mais raras do planeta. Juro pra vocês… meu sangue corria de uma maneira que nunca tinha corrido antes. Meu cérebro pipocava de “e se… e se… e se…” – eu não esperava sentir tudo com tanta intensidade.

No final da tarde entramos no primeiro recinto para iniciar a inspeção. As grades com cadeados e correntes tilintavam, o ar carregava poeira fina e plumas, e o chão guardava rastros de sementes antigas. Os quase vinte pares de olhos nos observavam em silêncio. Era como se cada um deles carregasse uma história de resistência impossível de traduzir. Naquele momento meu coração partido ecoou entre o silêncio dos humanos e os chamados intensos das aves – tanto as cativas quanto as soltas do lado de fora, curiosas com a movimentação.

O calor da caatinga que encontramos ali dentro, no entanto, parecia aliviado pela ventilação natural – uma dádiva para as aves, mas também uma ameaça invisível, já que facilitava a dispersão de partículas. Cada detalhe tinha um lado positivo e outro preocupante… um paradoxo constante.

No dia seguinte, todos paramentados até os dentes! Capotes cirúrgicos, máscaras, luvas, gorros, propés e até “macacão de Zé Gotinha” – teve inclusive gente desmaiando… pense num calor!

Entrávamos e saíamos de cada recinto com a coreografia de um balé sanitário: higienizar, vestir, observar, anotar, descartar, incinerar… 5, 6, 7, 8! Higienizar, vestir, observar, anotar, descartar, incinerar. Em alguns momentos, como belíssimos cosplays de Zé Gotinha, era possível imaginar todo o cenário virando roteiro de filme – ou talvez de vídeo pro TikTok (com direito a dancinhas pra ilustrar a movimentação).

Entre um recinto e outro, as histórias se multiplicavam: apelidos, curiosidades, relatos que misturavam ciência e tradição popular…

Enquanto isso, no campo, subíamos em caraibeiras centenárias de mais de 20m de altura, recolhíamos material de ninhos de aves silvestres e encontrávamos rastros da vida selvagem – de carcaças no chão ao cheiro forte de um felino rondando. Tudo isso sob o olhar atento de drones, binóculos e câmeras. Ah! Não posso esquecer do sentimento de vitória da equipe ao encontrar (em campo NOTURNO!) uma coral-verdadeira passando logo à frente!

As noites eram longas. Havia o cansaço do corpo, mas também a adrenalina de saber que, em cada árvore ou recinto, estava em jogo não só a saúde de indivíduos, mas a segurança de uma espécie inteira… aliás, de espécieS inteiraS, né? Isso ecoava na minha cabeça o dia inteiro, mas pesava mais antes de dormir… claro!

Foram longos dias de anotações, reuniões, diálogos tensos e descobertas. No meio da poeira da estrada, no som de aves soltas pousando nas grades, nas conversas com comunitários locais e na visão de aves raras, estava a essência do trabalho com fauna silvestre: ciência, cuidado, paciência e, acima de tudo, compromisso.

Ao final dessa primeira missão, voltamos para casa exaustos, mas carregando algo maior do que os relatórios preenchidos. Voltamos lembrando que ser veterinário de silvestres é estar entre mundos: o da ciência e o da natureza, o da política e o da paixão, o da ética e do egocentrismo. E que, mesmo em meio às tensões, o objetivo nunca muda: garantir dignidade e futuro para cada vida que cruzar o nosso caminho… isso tudo vai além do juramento que fazemos ao pegar o canudo, vai da essência individual dos profissionais.

Sobre a Autora:

Evelyn Pimenta é médica-veterinária mas antes disso, iniciou sua trajetória em Ciências Biológicas, movida pela paixão pela vida selvagem. Durante um estágio, descobriu na saúde pública um propósito ainda mais profundo – e foi essa descoberta que a levou a trilhar o caminho da Medicina Veterinária.

Desde os primeiros semestres da graduação, passou a atuar no Hospital Veterinário da UnB, onde atualmente integra o Setor de Animais Silvestres. Desde 2019, dedica-se ao cuidado, manejo e reabilitação da fauna nativa, com foco em práticas éticas, bem-estar animal e biossegurança hospitalar.

De campanhas de vacinação a ações de campo em emergências sanitárias, Evelyn acredita que ser médica-veterinária é mais do que tratar – é agir com responsabilidade diante da vida em todas as suas formas.

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